sábado, 26 de junho de 2010

"O Mestre" - Ana Hatherly. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

- Ah, o corpo! Mas quem nos diz que no nosso corpo não se repetirá aquela lenda do inventor da lira, a história daquele homem a quem morreu um dia o filho ternamente amado? Não é verdade que não o querendo enterrar, o Pai pendurou-lhe o corpo no ramo de uma árvore, até que o esqueleto se desfez restando apenas intacto o osso de uma coxa e que então o Pai fez com essa parte do corpo do seu filho uma lira para com ela cantar a tristeza de o haver perdido?
Todos podemos fazer do nosso corpo uma lira para com ela cantarmos a tristeza de o havermos perdido, mas todos podemos igualmente fazer do nosso corpo uma lira e com ela cantarmos a alegria de termos um corpo vibrátil como um instrumento musical. Não pendurarei o corpo da pessoa amada num ramo duma árvore esperando que o cento lhe dilacere a carne e me deixe o seu esqueleto para eu fazer um violoncelo e dos seus membros arcos. Saberei tocar com as minhas mãos a mais irreal de todas as formas, o corpo, esse breve condensado de linfa multicor estremecendo ao som da minha voz, da tua voz, correndo, rindo, dormindo, erguendo os olhos, estendendo a mão para acariciar, empunhando a lâmina fina com que há de finalmente destruir-se até ficar uma lira pendurada num ramo duma árvore.

* Ele vem comigo ouvir o som da nossa lira. Viva. Em carne, osso e música *

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